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   Entrevista com Pascal Lamy: o comércio internacional está em um beco sem saída?(*)

Universia Knowledge Wharton. Estagnou-se o comércio internacional com a crise iniciada em 2008? As coisas não são tão simples, disse Pascal Lamy, Diretor-Geral da Organização Mundial do Comércio, durante uma entrevista concedida em setembro a ParisTech Reviewy Knowledge@Wharton. Embora surjam pressões protecionistas, disse Lamy, o problema está relacionado com a crescente complexidade do comércio e dos limites estruturais do processo de negociação dos países-membros.

A seguir, a versão editada da entrevista.

-Em paralelo à Conferência Río+20 [Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, de junho de 2012 no Rio de Janeiro], a Câmara Brasileira de Comércio fez referência ao risco de um "protecionismo verde". Isso significa que é possível que surjam outras barreiras discretas para o comércio?

-Eu não formularia a questão exatamente nesses termos, embora algumas regulamentações técnicas pretendam, de fato, proteger os mercados internos. Na prática, porém, do que estamos sendo testemunhas, basicamente, é da 'complexidade crescente' do jogo. Vamos tomar como exemplo o caso da Ásia.

60% do comércio internacional da região tem lugar entre os países do próprio continente. Agora estamos presenciando um forte impulso para a abertura do comércio continental. Os países asiáticos estão abrindo-se uns aos outros. Trata-se de um [...] fenômeno com implicações para a expansão mais generalizada do comércio internacional no qual os países asiáticos desempenham um papel destacado.

Mas esse cenário torna-se mais complexo se analisarmos os acordos de comércio existentes: são muitos, e têm diferentes níveis e ocupam diferentes espaços. Está, por exemplo, ASEAN [Associação das Nações do Sudeste Asiático], ASEAN+3 (ao qual se acrescem a China, a Coreia do Sul e o Japão), mas está também a Associação Transpacífico (TPP) lançada pelos Estados Unidos e que não inclui a China. A integração comercial, portanto, está longe de ser uniforme e continua sujeita a questões políticas subjacentes.

A isto é necessário acrescentar a proliferação das cadeias globais de produção, às quais se integraram os países asiáticos, além dos Estados Unidos, a União Europeia, a Costa Leste da América Latina e, em menor grau, outras áreas também. Esse é um fenômeno ainda mais influente, embora discreto. De média, o conteúdo de importações dentro das exportações passou de 20% para 40% em 20 anos. É um aumento significativo! O mais importante, no entanto, é que é possível ver, na distência, a dissolução de toda ideia de comércio internacional, visto que já não será uma questão de fronteiras, mas de espaço regulatório diferenciado.

- Isso muda tudo?

-De forma radical. Já não estamos no período entre 1980 e 1990, quando as negociações comerciais se preocupavam sobretudo com as cotas e tarifas. Vivemos em um mundo onde os riscos detrás da abertura comercial estão relacionados com a juxtaposição de diferentes regulações. É mais difícil negociar com essas preferências, porque as regulações não têm como objetivo proteger os produtores tanto como os consumidores. Portanto, considero que é pronto demais para falar de protecionismo ou do regresso das barreiras no comércio. Não há dúvida de que os lobbies de algumas empresas têm esse objetivo: querem forçar a adoção de regulações específicas. Mas esse não é o verdadeiro desafio. O verdadeiro desafio consiste em proteger o consumidor.

Nesse sentido, há perguntas que são fundamentais: o que é risco? Está claro que a resposta a essas perguntas está igualmente relacionada com o nível de desenvolvimento de uma determinada sociedade. Mas se tomássemos duas regiões equivalentes de desenvolvimento, como Estados Unidos, por um lado, e a Europa, por outro, a questão da carne tratada com hormônios, por exemplo, será analisará segundo uma perspectiva bastante diferente em cada lugar. A dimensão cultural é fundamental aqui, e é muito mais difícil de negociar.

Essas novas questões reforçaram a importância do enfoque setorial, conforme demonstrado pelo Acordo de Compras do Governo assinado em dezembro de 2011 [que fornece regulações melhores para a concessão de contratos pelo Governo e utilização de recursos públicos], o qual deve aumentar o alcance de acesso ao mercado de US$ 80.000 milhões para US$ 100.000 milhões ao ano em áreas como infraestrutura, transporte público e equipamentos hospitalares.

- Considera que o poder cada vez maior dos acordos de comércio bilaterais ameaça os acordos multilaterais?

-É preciso lembrar, no início, a razão pela qual os economistas são favoráveis ao multilateralismo. Se todos o consideram uma boa fórmula é porque oferece às empresas as melhores condições possíveis no tocante à estabilidade e à transparência. Essa é a ideia detrás da expressão "igualdade de condições": um ambiente de mercado em que todas as empresas continuam as mesmas normas e onde, portanto, estão sujeitos às mesmas condições de competitividade. O GATT [Acordo Geral de Tarifas e Comércio] e, desde 1995, a OMC, têm origem nessa visão.

É verdade que as negociações da Rodada de Doha, que deveriam permitir que avançássemos nessa direção, encontram-se, por enquanto, estagnadas. É nesse contexto quando se torna imperativa a questão dos "acordos preferentes de comércio", em outras palavras, os acordos bilaterais. Atualmente há cerca de 400 acordos bilaterais, entre os que se incluem aqueles sobre os que se informou à OMC, e os que se implementaram sem informar à OMC, os que foram assinados, mas ainda não se oficializaram, os que estão sendo negociados e aqueles que ainda são uma minuta.

Os acordos que não são multilaterais têm intenções, geografias, métodos e composições setoriais diversas. O impacto desses acordos sobre o comércio global nos levou a decidir de forma coletiva que seriam comunicados à OMC, para que fosse verificado se havia conformidade com as normas da instituição.

Apesar dos aspectos jurídicos, que mais devemos pensar a esse respeito? Do nosso ponto de vista, qualquer coisa que contribua para a redução das tarifas vai na direção correta, visto que permite, em última instância, reduzir as barreiras ao comércio e promover a convergência. É o que acontece em muitos acordos. Porém, as coisas são muito diferentes no tocante aos acordos que, para abrir o comércio em bases preferentes, quebram as preferências regulatórias. Se começarmos a tratar com assuntos regulatórios em contexto bilateral, obtém-se um efeito regressivo. Essa é exatamente a questão, porque as barreiras não-tarifárias ao comércio constituem um problema cada vez mais central.

-Nessas condições, as grandes rodadas de negociações (a Rodada Uruguai e a de Doha) ainda têm alguma importância?

-A tecnologia das rodadas é um conceito político. Alinha-se com um mundo ricardo-schumpeteriano -isto é, com as vantagens comparativas de Ricardo e a criação/destruição de Schumpeter- em que a liberalização do comércio é, em geral, beneficiosa, mas em que há também perdedores e ganhadores. Essa é a origem das rodadas: o impacto da liberalização do comércio é entendido como uma questão política, e há tentativas no sentido de equilibrar essa perda: abro este mercado com o risco de incomodar meus produtores e, em troca, abre uns e outros mercados, nos quais tenho uma vantagem comparativa.

Esse modelo foi levado ao extremo por três fenômenos: a violência dos choques econômicos durante as fases de destruição, cuja magnitude nem Ricardo, nem Schumpeter, poderiam ter imaginado; o número de participantes envolvidos e, por último, os limites políticos com os quais são enfrentadas as possíveis concessões. Estados Unidos, por exemplo, não pode, por razões políticas, deixar de subsidiar o algodão. Isso é economia política em seu sentido mais amplo: o que temos aqui são negociadores que negociam consigo mesmos.

Esses limites políticos são ainda mais sensíveis em um contexto de crise, porque as economias são más frágeis e a capacidade política dos negociadores se torna fraca.

Sua pergunta sobre o bilateralismo tem lugar neste contexto. Alguns processos de integração regional, mais fáceis de serem executados, poderiam, talvez, ajudar a reduzir o número de participantes e, possivelmente, a gerar participantes aptos para negociar. Esse foi um dos progressos históricos da integração europeia; atualmente, não obstante, a UE é o único exemplo de união aduaneira que tem capacidade de negociação.

No comércio, embora a crescente complexidade de mudanças torne o conceito de fronteiras políticas menos relevante, as regras continuam sendo estabelecidas pelos tratados internacionais assinados por países soberanos. É um mundo westfaliano, no qual os Estados discutem com outros Estados. A economia e a política já não compartilham a mesma geografia.

-Não há discussões em paralelo conduzidas por quem está no campo de ação e evita os filtros dos Estados?

-Naturalmente, as discussões têm lugar nas instâncias superiores ou em paralelo com aquelas levadas a cabo pelos governos com a sociedade civil: as ONGs [organizações não governamentais], os sindicatos, as organizações de produtores. Hoje, no entanto, se escutam sobretudo em nível nacional, embora, como Diretor-Geral da OMC, passo muito tempo reunido com ONGs e outros grupos de pressão. As questões de que tratam, os interesses incluídos por outros participantes (não países), não están ausentes do debate, embora tenham dificuldade em encontrar seu caminho em meio de discussões já bastante complexas.

-É possível que haja uma representação justa de interesses?

-Isso é, por definição, muito difícil, pelo menos, por duas razões. Hoje, a primeira razão é técnica ou, mais precisamente, surge de aspectos técnicos das questões discutidas. Esses aspectos técnicos colocam o problema da captura da regulação por interesses especiais. A transparência é fundamental. Em determinado sentido, ela é profiláctica. Não obstante, em se tratando de assuntos muito técnicos, onde um simples detalhe pode fazer a diferença, isso não é suficiente. O trabalho da sociedade civil é fundamental nesse ponto. É preciso especialização, capacidade de interpretação e vontade política para informar e educar o público. Ainda há muito a ser feito nesse aspecto.

A segunda razão, que suscita um problema fundamental para as negociações comerciais, é que, nesse jogo, as partes perdedoras sabem precisamente o motivo que as leva a perder e formar coalições para apoiar suas causas, enquanto que os que vencem muitas vezes não percebem isso A camiseta que alguém compra hoje mais barata não tem uma etiqueta de "Obrigado, OMC" estampado nela! Levo 20 anos no comércio internacional e, como é de se esperar, em países emergentes, a opinião pública é cada vez mais favorável à liberalização do comércio, enquanto que nos países desenvolvidos a atitude é a oposta, não mais em nome dos pobres do sul, segundo foi dito nos círculos radicais nos anos 90, mas em favor dos pobres do norte. O impacto positivo está opacado pelas dificuldades associadas à reestruturação das economias ocidentais -devido à crise, está claro-, mas também pelo grande movimento dos países industrializados para os países emergentes, o qual pode levar a alguns a imaginar que o desemprego deve-se ao deslocamento. Nessas circunstâncias, os negociadores dos países desenvolvidos têm agora menos margem de manobra.

-De fato, alguns países emergentes, sobretudo a Índia e a China, protestaram recentemente contra a proposta do imposto europeu sobre o carbono com o argumento de que o desenvolvimento sustentável escondia, na verdade, uma agenda protecionista. Qual sua opinião?

-Quanto aos objetivos pretendidos, as regras nacionais são, obviamente, menos eficazes na luta contra a mudança climática que um regime global [...] A compatibilidade com regras abertas de comércio seria, obviamente, mais adequada.

Do ponto de vista jurídico e da OMC, não há objeção, em princípio, à introdução de um imposto do carbono cujo propósito seja internalizar as questões ambientais externas, na medida em que nossos estatutos situam o comércio e todas as mudanças do serviço de um desenvolvimento sustentável. A dificuldade seria de que forma garantir que as ferramentas introduzidas cumpram com as exigências das normas.

Há quatro ferramentas principais: regulamentação, subsídios, impostos e licenças. Cada um desses enfoques pode ser provado no tocante aos acordos da OMC (por exemplo, o acordo sobre subsídios). Além disto, há uma quantidade precisa de jurisprudência que permite o trabalho caso a caso. Alguns países escandinavos têm um imposto sobre o carbono em vigor há 30 anos, sem que isso tenha acarretado jamais um problema.

-Entre os assuntos mais delicados está também a questão do regime da taxa de câmbio.

-É verdade. A questão das taxas de câmbio jamais foi tratada no âmbito da estrutura da OMC, mas a questão reapareceu no ano passado, embora não em relação ao yuan, mas por iniciativa dos brasileiros e em relação a questões referentes à taxa do real brasileiro com relação ao dólar.

O mínimo que podemos dizer é que o assunto é muito complicado. O Artigo 15 do GATT, que teria sido escrito por Keynes, diz basicamente que não é possível manipular a taxa de câmbio para esquivar as normas da abertura de comércio que o país assinou. Trata-se de um princípio fundamental; no entanto, jamais foi invocado em nenhum litígio, portanto, não há nenhuma doutrina jurídica real sobre o assunto. A questão surgiu evidentemente em 20 anos de debate público. Mas, durante esses 20 anos, todo o mundo, inclusive eu, sentimos que não se tratava de uma questão própria da OMC: Genebra trata com questões de comércio e Washington, quartel-general do FMI, com taxas de câmbio. Agora quebramos o silêncio [...] mas atualmente não estamos mais perto do que estávamos então!

O FMI [Fundo Monetário Internacional] é a institução mais adequada para lidar com assuntos desse tipo. De forma recente, o Fundo revisou seu diagnóstico: o yuan está só "moderadamente" desvalorizado, enquanto que há dois anos estava "substancialmente" desvalorizado.

Há diversos elementos que destacam nas atuais discussões. Alguns são econômicos, outros, jurídicos.

Em primeiro lugar, não é possível negar que as flutuações da taxa de câmbio tenham um impacto de curto prazo nas mudanças. Mas esses efeitos são menos perceptíveis a longo prazo. Seu impacto depende de um parâmetro: o valor agregado de sua participação no comércio mundial. É evidente que uma moeda desvalorizada estimula as exportações, mas segundo eu disse anteriormente, há um volume cada vez maior de importações dentro das exportações. Outrossim, é preciso levar em conta a diversidade de moedas das cestas de importação e exportação. Por último, se considerássemos o caso especial do yuan, o reequilíbrio gradual do comércio da China tende a resolver o problema. Partindo do princípio de que, em algum momento, seria possível demonstrar que a China se beneficiou de uma vantagem competitiva injusta pela desvalorização de sua moeda, essa vantagem teria sido só temporária.

Portanto, faltam argumentos e ferramentas jurídicas para tratar essas questões. Ainda que fosse constatado que a taxa de câmbio china não é realmente livre, nada obriga a China a mudar seu procedimento. A legislação americana tentou legitimar as compensações de antidumping com base no argumento de que essas compensações constituíam uma represália contra subsídios disfarçados. No entanto, essa lei foi rejeitada por uma das Câmaras do Congresso americano.

É preciso entender que as redes de regulação internacionais são heterogêneas, fazendo com que seja mais ou menos fácil superá-las. Algumas instituições têm redes fortemente ligadas, como a Organização Internacional da Saúde Animal (OIE). Outras —embora tratem com um tema importante relacionado com o andamento dos negócios, como a corrupção— têm redes mais fracas. Os países não assinam regulações internacionais, a menos que tenham algum interesse nelas. Em 1947, quando o GATT foi assinado, havia uma motivação muito forte, visto que estávamos somente emergendo da crise dos anos 30 e fazendo o melhor que podíamos para lidar com as consequências da Segunda Guerra Mundial. Naquela época, provamos que éramos capazes de ir um pouco além do jogo westfaliano. A crise de hoje suscita, uma vez mais, a mesma dificuldade. Seremos capazes de reagir a tempo? Essa é a grande questão da nossa época.

(*) Autor Universia Knowledge Wharton. Publicado em América Economía 24-10-2012

http://www.americaeconomia.com/economia-mercados/comercio/entrevista-con-pascal-lamy-ha-llegado-el-comercio-internacional-un-callej

Nota: As opiniões refletidas na presente entrevista são de exclusiva responsabilidade dos seus participantes.

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